Governo baixa metas de redução de bovinos no roteiro da descarbonização

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Consulta pública aconselhou a ajustamentos nos cenários iniciais do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Redução de efetivo bovino será agora entre 20 e 30 por cento, mas haverá mais tecnologias de mitigação e mais pastagens.

A descarbonização da economia portuguesa até 2050 já não cortará até metade do efetivo de bovinos.

A consulta pública do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, que terminou no início deste mês de março, resultou na necessidade de «introduzir alguns ajustamentos», disse ao Público Francisco Avillez, coordenador da equipa técnica da agricultura, apontando-se agora para uma redução entre 20 e 30 por cento dos atuais quase 1,3 milhões de vacas em vez dos polémicos 25 a 50 por cento.

Para compensar esta alteração, adianta, terão de ser adotadas mais tecnologias e práticas mitigadoras das emissões das explorações. Confirma que estas passarão por uma alimentação mais digestiva para os animais, por uma melhor gestão dos estrumes e urinas e também por uma maior expansão das pastagens permanentes de produção extensiva, como são as pastagens biodiversas, pela sua capacidade de sequestro de gases com efeito de estufa (GEE). Os novos valores serão agora definidos.

A agricultura portuguesa contribui com 10 por cento do total das emissões de Dióxido de Carbono (CO2) do país, em linha com os valores internacionais, e o que mais pesa são os 3,2 milhões de cabeças, quase 40 por cento das quais de bovinos, sendo o restante porco, cabras, ovelhas e aves. Os cenários levados a consulta pública apontavam também para mais 18 de porcos e menos 18 por cento de aves, tudo dentro de 30 anos e dirigido a uma atividade económica especialmente concentrada na região do Oeste até ao Minho.

«Se desagregarmos as emissões do setor agrícola, 83 por cento são do sector animal e, destes, 70 por cento são bovinos, pelo que qualquer esforço de descarbonização passa necessariamente pela pecuária e particularmente pelos bovinos de leite e carne», reconhece Francisco Avillez.

Por sua vez, as pastagens atuais conseguem reter apenas 3,9 milhões de toneladas de carbono no solo. «O setor agrícola é dos que mais serão penalizados nas alterações climáticas, deve ser o que mais pode contribuir para mitigar os efeitos», diz Francisco Avillez, um feito que não lhe parece difícil. O país já teve 400 mil hectares de pastagens, mas o apoio foi retirado. «Foi um erro. Hoje são 40 mil e degradados». «É mais fantasioso prever que todos os carros serão elétricos do que conseguir 600 mil hectares de boas pastagens», mesmo num país com um solo fraco de nutrientes. «Temos um milhão de hectares de pastagens pobres, chegar aos 600 mil é muito bom».

Tiago Domingos, investigador do Instituto Superior Técnico da área de energia e ambiente e presidente do centro Maretec, até acredita que as pastagens semeadas podem chegar ao milhão de hectares, cerca de 10 por cento do país, abrangendo o Ribatejo, Beira Baixa e Alentejo, «onde estão muitas zonas de montado de sobreiro e azinheira». É o que lhe disse a experiência com pastagens biodiversas em Portugal em que esteve envolvido vários anos através do Terraprima.

Qualquer que seja a redução, esta far-se-á no quadro de uma concorrência desigual, com «uma maior liberalização do comércio no mundo, onde a carne de vaca vai chegar a Portugal a preços mais competitivos, em muitos casos em relação aquela que conseguimos produzir», avisou o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, quando apresentou o Roteiro, em Dezembro passado. Mas este é um assunto que se escusa a retomar.

Para Francisco Avillez, a resposta para este risco passa sobretudo pela reforma que se anuncia para a Política Agrícola Comum (PAC), da qual depende fortemente o setor, e quando a União Europeia (UE) procura que todas as suas políticas se orientem para a neutralidade carbónica em três décadas.

Outro «elemento de pressão» concreto que condicionará o sector e tido em conta nos cenários da descarbonização, será “quase inevitavelmente, a partir de 2030-40, o desmantelamento das proteções aduaneiras, especificamente a 25 por cento dos bovinos e 20 por cento dos frangos» e o que se segue será uma questão de grau. Desde uma reorientação dos apoios europeus da pecuária para os cereais até «tornar a agricultura mais competitiva e sustentável, transferindo os apoios à produção para apoios ambientais e climáticos».

Vê a PAC a evoluir para dois objetivos: «promover sistemas mais competitivos e, não podendo competir, têm de ter importância ambiental e social», pelo que «muitas unidades podem continuar a ter pecuária, mas para terem apoios, terão de ser extensivas. Não há razão para as mais intensivas serem apoiadas, têm que ser competitivas». Mas ainda não se vê o futuro nem se garante que a sociedade optará por consumir menos carne vermelha.

«Se a vaca a consumir no futuro não for produzida em Portugal, virá do Brasil e da Argentina, onde o aumento da produção de carne é extremamente prejudicial porque a expansão é feita à custa da Amazónia e do Cerrado», adianta Tiago Domingos. «Se o nosso consumo não mudar, a carne terá de ser produzida em outros países e aí sim os impactos serão maiores: é onde há desflorestação e menor eficiência. Será hipócrita».

Para este investigador, «a política não é ter menos vacas mas pagar pelo CO2 sequestrado ou subsidiar a tonelada de metano sequestrado e vamos incentivar a engenharia e a ciência a trabalhar em tudo isto». O ditado alentejano que aprendeu recentemente ajuda-o a explicar o que está em causa. “Cem vacas ou sem vacas”. A neutralização carbónica «implica necessariamente a descida de emissões com ruminantes, sejam vacas, cabras ou ovelhas». Mas para isso «tem que ser economicamente viável e atrativo para os agricultores», remunerados pelos serviços que prestam à sociedade, emitindo menos CO2 e tendo mais capacidade de sequestro. Considera que o Fundo Ambiental tem receita para pagar aos agricultores e, se houver financiamento pelo lado da PAC, «pode-se ter menos animais e menos emissões e não perder rentabilidade. O que é preciso é financiar o lado do carbono».

A expansão das pastagens duradouras previstas no Roteiro vai ao encontro do projeto Terraprima. «Nos últimos 10 anos, trabalhámos nisto, reconhecido pela Comissão Europeia (CE) como a melhor solução para o clima». Foram 50 mil hectares de pastagens semeadas envolvendo mais de mil agricultores, no Alentejo, Ribatejo, Beira Baixa, zonas de solo pobre em matéria orgânica e com potencial para a aumentar, financiados pelo Fundo Ambiental, entretanto interrompidos. Na impossibilidade de reproduzir as condições únicas dos pastos dos Açores, que garantem alimento o ano inteiro, defende que «as pastagens semeadas biodiversas permitem alimentar no inverno e no verão» e são ricas em biodiversidade «porque existe pastoreio».

O debate internacional à volta do impacto da produção pecuária leva mais de uma década, começou em 2006, quando Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) alertou para o prejuízo ambiental da produção pecuária no mundo e para a necessidade de mudança da dieta alimentar.

«A necessidade de alimentar a população que vai existir em 2050 vai aumentar em 50 a 90 por cento os impactos agrícolas sobre o ambiente, não só de metano, mas também de desflorestação, consumo de água, fertilizantes de azoto e fósforo, na ausência de medidas apropriadas: menos fertilizantes, menos consumo de carne, utilização mais sustentável da água e reconhecimento dos serviços ambientais», afirma Filipe Duarte Santos, professor da Faculdade de Ciências na Universidade de Lisboa, especialista em alterações climáticas e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS).

Considera, por isso, que as emissões de metano, a fermentação entérica, na linguagem mais técnica, são «o problema menor», mas já não o são enquanto um dos três «impactos da pressão do crescimento económico», que enumera. Os outros são o abate das florestas e a pressão sobre os recursos hídricos. «A humanidade está confrontada com um problema muito mais difícil de resolver do que se pode imaginar», desabafa.

«É mais preocupante o impacto da necessidade de alimentar uma população crescente num mundo em que as pessoas estão a ter mais prosperidade económica, estão a viver melhor. Somos 7,6 mil milhões de pessoas agora e seremos 9,2 mil milhões em 2050. Como vamos alimentar todas estas pessoas? Esse objetivo tem impactos ambientais extremamente consideráveis».

Lembra que no ano 2000, cada uma das 6,1 mil milhões de pessoas do planeta tinha 0,25 hectares de terra para se alimentar, enquanto as projeções de 9,5 mil milhões de pessoas para 2050 reduzirão para 0,15 hectares per capita. «É um problema real», ao qual nem a agricultura portuguesa escapará.

Fonte: Público

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